Nesses dias, passei mais tempo que o humanamente desejável em aeroportos, com resultados estranhos. Antes temia decolagens, pois as julgava um atentado contra a natureza. Agora, temo pousos, sempre com a sensação de que a aeronave, um bólido, está descendo muito rápido. Um outro resultado é o embotamento. A incapacidade de estar sensível a qualquer assunto, após atrasos, cancelamentos, desvios de vôos e a perda que, com o acidente, nos atingiu a todos. Assim, consigo apenas repassar umas anotações inúteis e breves. Como imerso em uma sopa quente, em pleno transe, anotei pouco ou quase nada. Manchetes de jornal: "o caos piorou" etc. Depois, lamentam não haver, entre nós, refinamento metafísico. No Brasil, até a imprensa consegue dizer o inefável. Se o caos é desordem completa, temos a situação de uma desordem ainda mais desordenada, o que, se possível imaginar, causaria nojo, asco e horror. Não havendo regra alguma, a "piora do caos" se afigura como uma ameaça e não como uma mera descrição, pois suprimiria, na origem, qualquer regra vindoura. O sem-sentido da linguagem é mais um sintoma.
Se escolhas definem um caráter, temos uma escolha emblemática. Cai Waldir Pires, após destruição paciente pelo governo, enquanto fica Renan Calheiros, um protegido. Uma foto, então, também emblemática: Nelson Jobim, com chapéu de bombeiro, lembra o Darth Vader, em pose que suscita um misto de demagogia e autoritarismo, talvez a tornar ainda maior nosso ridículo.
Enquanto isso, um passageiro, desesperado com o cancelamento de seu vôo, tenta dar uma carteirada. Sinal de nossa impotência de consumidores, desses aquém da condição de cidadãos, ele empunha um cartão e solta gritos lancinantes: Sou um cliente fidelidade, sou um cliente fidelidade, sou um cliente fidelidade...
João Carlos Salles é professor do Departamento de Filosofia da UFBA e publicou os livros A Gramática das Cores em Wittgenstein e O Retrato do Vermelho e outros ensaios.
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
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